Aqueles que são da minha idade ou um pouco mais velhos lembram-se do período em que este país vivia sob uma ditadura. Foi uma época de perseguições políticas, prisões arbitrárias, protestos populares sufocados por soldados. Pelo menos estas são estas as imagens que são exibidas pela mídia sempre que se evocam estes tempos sombrios. Mas uma coisa que parece que a mídia se esquece de mencionar é que estes atos cruéis e injustos foram sempre praticados contra aqueles que se opunham ao regime. Para os demais, a vida se passava de maneira mais ou menos normal. As pessoas trabalhavam, estudavam, se divertiam, amavam, muitas vezes como se nada estivesse acontecendo. Claro que havia problemas. Foi uma época em que se exacerbou a concentração de renda e se iniciou o desmonte da educação pública. Mas foi também uma época em que se acelerou a industrialização do país e se realizaram grandes obras, como Itaipu e a ponte Rio-Niterói. A verdade é que a nossa "ditadura" não chegou nem perto do que acontece, por exemplo, na Coréia do Norte. Nossa ditadura branda, ao mesmo tempo nos colocou no caminho do desenvolvimento e nos impôs uma dívida externa que na época era impagável, mas que acabou sendo corroída pela inflação.
Vivemos então em uma época de Democracia. Pouco tempo depois do seu retorno, percebemos que os governantes democráticos eram tão incompetentes quanto o eram os ditadores. Às vezes até mais. Mas a democracia tem a virtude de revelar mais facilmente os corruptos e incompetentes. Tanto que vivenciamos diariamente a exposição e algumas vezes até a exoneração desses corruptos e incompetentes. Talvez por causa disso, alguns digam que antigamente era melhor. Como os corruptos não apareciam, por serem tão eficazmente ocultos pela máquina estatal, tinha-se a impressão de que eles não existiam, ou pelo menos eram em menor número.
Por incrível que pareça, tanto a ditadura quanto a democracia tem virtudes e defeitos. Hitler transformou uma nação entre escombros em uma potência industrial. Lenin e Stalin converteram uma grande nação feudal em uma gigantesca potência. Por outro lado, os Estados Unidos, autoproclamados guardiões da democracia, promoveram uma pesada perseguição aos comunistas que acabou atingindo muitos que nada tinham a ver com comunismo. Charles Chaplin foi expulso e teve sua carreira no cinema arruinada, simplesmente porque se atreveu a alertar o país sobre o perigo que Hitler representava. Isso sem mencionar a perseguição aos negros e latinos, que em muitos locais perdura até hoje.
Democracia é definida como o governo do povo, pelo povo e para o povo. Mas quem é o povo? Quando acontece uma eleição, a maioria vota em um candidato, que por isso é considerado vitorioso. E quanto aos que votaram nos candidatos derrotados? Eles não são o povo? Perderam seu direito ao governo? Creio que precisamos rever nossa definição de democracia. Eu sugiro a seguinte:
"Democracia é o governo do povo, pela maioria e para a maioria."
Mas esta definição tem um defeito grave. Ela se baseia em uma mentira. Ela presume que os representantes eleitos de fato representem seus eleitores. Temos uns poucos que, usando o poder da propaganda e do tráfico de influência, assumem altos cargos e quando o fazem, governam e legislam em causa própria. Isto acontece em maior ou menor grau em todas as nações ditas "democráticas". Algumas possuem mecanismos razoavelmente eficazes para reduzir este efeito. Outras não. Por isso, proponho mais uma definição de democracia:
"Democracia é o governo do povo, pela minoria e para a minoria."
Finalmente chegamos a uma definição de democracia que é quase indistinguível da ditadura. Cinicamente, podemos afirmar que a democracia é uma ditadura onde as pessoas votam nos governantes. Talvez por causa disso é que presenciamos durante a história, inclusive a do Brasil, de oscilações entre a democracia e a ditadura.
Como sair desta arapuca?
Antes de prosseguir com minha linha de raciocínio, quero esclarecer uma coisa importante que é a distinção entre regime de governo e sistema econômico.
Quando eu estava na sexta ou sétima série, havia nas escolas uma disciplina chamada Organização Social e Política do Brasil, conhecida como OSPB. Esta disciplina nada mais era do que uma ferramenta de propaganda política do governo. E era curioso o fato que nesta disciplina, o Brasil era apresentado aos alunos (isso em pleno governo Geisel) como uma terra de liberdade. Eram-nos apresentados dois regimes de governo: o liberal e o totalitário. Liberal era o nosso. Totalitários eram os governos comunistas e socialistas, embora este conceito fosse apresentado de maneira discreta, sem discorrer muito sobre o que era socialismo ou comunismo. Felizmente para mim e meus colegas da época, tive bons professores que souberam, também discretamente (e algumas vezes nem tanto) desarmar de nossas mentes esta arapuca ideológica. O que eu quero destacar é que, durante muito tempo, foi feita uma confusão entre regime e sistema econômico, apresentando-se a idéia de que o sistema capitalista era sempre liberal e democrático, enquanto o sistema comunista/socialista era sempre totalitário e ditatorial. Contudo, basta um exame superficial na história para descobrirmos inúmeros casos de ditaduras capitalistas, tais como a Alemanha nazista, o primeiro governo Vargas e as ditaduras da América Latina nos anos 60 e 70. Infelizmente, democracias socialistas são difíceis de detectar. Isto deve-se justamente ao seu caráter revolucionário e centralizador.
Portanto, é importante deixar claro que regime de governo e sistema econômico não estão necessariamente atrelados. O termo sistema econômico refere-se ao modo de produção de uma sociedade, ou seja, o modo como os bens e serviços são produzidos e distribuídos. Alvin Tofler, em seu livro "A Terceira Onda" discorre sobre como os sistemas de produção modificaram-se através da história. Ele menciona os seguintes sistemas: caçador/coletor, agrícola e industrial, este último subdividido em capitalista e comunista/socialista (segundo ele, estamos saindo do sistema industrial para outro baseado na informação). Já o termo regime de governo refere-se exclusivamente às relações de poder dentro de uma cultura ou povo e como este poder é distribuído e exercido. Temos ai uma gigantesca variedade de opções, desde os governos patriarcais e tribais até as sofisticadas repúblicas federativas e organizações supra nacionais. Em todas elas, os aspectos democráticos e ditatoriais podem estar presentes em maior ou menor grau. É muito difícil, talvez mesmo impossível, que algum governo seja cem por cento democrático. Infelizmente, é altamente provável a presença de um regime cem por cento ditatorial, embora mesmo a mais absoluta ditadura sempre precisará de apoio, principalmente das forças armadas e dos detentores do dinheiro.
Uma vez que deixei clara a distinção entre sistema econômico e regime de governo, vamos retomar a definição tradicional de democracia:
Democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo.
Durante muito tempo, desde que o conceito de democracia surgiu entre os antigos gregos, sempre associou-se o voto e a eleição de representantes ao conceito de democracia, tanto que muitos acreditam que sejam sinônimos.
Nada está mais distante da verdade.
De fato, o voto sempre foi a melhor forma de se conhecer a vontade popular. Contudo, sempre foi usado em favor da maioria, ou melhor dizendo, para representar a opinião da maioria. Assume-se ordinariamente que a opinião da maioria é a melhor opinião. Infelizmente, a história está repleta de exemplos em que a opinião da maioria estava errada. Durante muito tempo, a maioria acreditou que a Terra era achatada e era também o centro do universo. Da mesma forma, inúmeras vezes a maioria levou ao poder governantes que se demonstraram incompetentes ou mesmo catastróficos.
Mas afinal de contas, por que alguém precisaria eleger um governante?
Nos acostumamos a associar o termo "sem governo" à falta de controle ou direção. Se por algum motivo um carro em movimento se ver sem um condutor a guia-lo, dizemos que o mesmo está "desgovernado". Estar desgovernado então é uma coisa ruim, não é desejável. Assim, somos educados a acreditar que para que as coisas não estejam "desgovernadas", é necessária a presença de um ou mais governantes. Na verdade, é fácil imaginar o que aconteceria se, subitamente, nosso país se visse sem presidente, ministros, governadores, prefeitos, juízes. Certamente o caos se instalaria. Saques, depredações e violência seriam imediatamente disseminados por todos os locais. Seríamos levados à barbárie.
Será?
Por volta de meados do século XIX, quando o capitalismo começa a se consolidar como sistema econômico mundial, as relações entre patrões e empregados das indústrias começam a azedar. Nesta época, filósofos como Karl Max e Pierre Proudhon começaram a propor algumas idéias que se tornaram muito populares entre os trabalhadores e nem um pouco entre os empresários. Estou falando das duas grandes correntes filosóficas que se levantaram em oposição ao capitalismo: o socialismo e o anarquismo. Em linhas gerais, o socialismo pegava que os trabalhadores deveriam apossar-se dos meios de produção, pelas armas se necessário, e que esses mesmos bens deveriam ser distribuídos igualitariamente pelo Estado. Já o anarquismo ia além, pois questionava a própria necessidade do Estado e pregava que todo homem é livre e portanto responsável por seus atos, não precisando portanto ninguém que lhe diga o que fazer ou como.
Tanto os movimentos socialistas como anarquistas foram muito ativos (e perseguidos) durante o final do século XIX e boa parte do século XX. Os socialistas, mais corporativos e organizados, conseguiram crescer e tomar o poder em vários países, principalmente a Rússia e a China, além de outras nações sob sua influência. Já os anarquistas, talvez devido a divisões internas, nunca chegaram realmente a emplacar. Um dos motivos é simples de explicar: como os anarquistas não acreditam em governo, não fazia muito sentido a candidaturas a cargos políticos, como presidência de sindicatos ou cargos no governo, pois qualquer tipo de liderança institucionalizada simbolizava a antítese de suas crenças. O fato é que, com raríssimas exceções, o anarquismo nunca foi implantado de maneira permanente. Já o socialismo sofre um declínio e acaba por se extinguir na maioria dos países em que é adotado. Isso ocorre justamente pela maneira como é implantado. A necessidade de distribuição dos bens e meios de produção pelo Estado acaba por fortalece-lo demasiadamente. Este excesso de poder, juntamente com a necessidade de combater o "inimigo" capitalista, provoca cerceamento da liberdade, desvio de recursos para a estrutura bélico-militar e a criação de benefícios especiais para os governantes e cidadãos de destaque. Tudo isso em conjunto levou ao aumento da corrupção e a final falência dos regimes.
Do apresentado acima, tiramos algumas lições:
1. O poder corrompe - qualquer pessoa que é elevada a uma posição de destaque está sujeita a ter uma visão distorcida do poder que tem ou fazer mau uso do mesmo;
2. Ideais bem intencionados podem ser corrompidos;
3. Mesmo os mais democráticos dos movimentos podem se transformar em ditadura.
Precisamos de uma nova maneira de ver a democracia, suplantando a noção de governo e substituindo a representação por ação direta. O que eu venho a propor aqui é algo que transcende a tudo o que já foi feito e proposto. Trata-se do comum acordo.
A idéia do comum acordo é a idéia da maioria absoluta. Não há minorias, mas um compromisso geral para o perfeito funcionamento da sociedade.
As sociedades modernas não podem prescindir de um governo, ou pelo menos de uma administração. Serviços públicos diversos que devem ser prestados em grande escala, (como água e esgoto, ruas asfaltadas, escolas, hospitais e segurança pública, entre outros) precisam ser administrados por alguém. A proposta é que estes administradores sejam escolhidos por mérito acadêmico e profissional e endossados em comum acordo por toda a população. Não pela maioria, mas por todos. Se houver um único voto contrário, o nome é descartado e outro candidado é apresentado. Eu vejo este administrador não como um governante, mas como um síndico, escolhido pela comunidade para administrar os assuntos de interesse comum, mas passível de ser imediatamente destituido pela moção de qualquer cidadão.
Quais as vantagens desta proposta?
A primeira vantagem é que este regime é totalmente independente do sistema de produção. Capitalista, comunista, agrário ou qualquer outra coisa que venham inventar, simplesmente não importa.
A segunda vantagem é aquela que se parece com uma desvantagem, que é justamente o fato de ser muito difícil se alcançar a unanimidade. Como se costuma dizer, é impossível agradar a gregos e troianos. Contudo, a necessidade de unanimidade torna cada cidadão diretamente responsável. Cada um saberá que a sua decisão pode emperrar a máquina e ele sofrerá as consequências.
A terceira vantagem é que o candidato terá que se provar merecedor de confiança. A menor ação desabonadora o desqualifica para o pleito.
Esta é a única maneira possível de se implantar a democracia tal qual a sua definição histórica.
Problemas? com certeza muitos. A estrutura político-partidária teria que ser toda revista e os partidos teriam outro papel. A educação teria que ser direcionada para a formação de verdadeiros cidadãos, autônomos e responsáveis, os conceitos de poder teriam que ser todos revistos.
Certamente a princípio seriam necessários mecanismos que permitissem uma decisão quando a unanimidade fosse realmente impossível de ser obtida. Outros mecanismos serviriam para impedir a pressão sobre grupos e indivíduos de modo a influenciar sua decisão (o voto secreto é um deles). Mas com o tempo, muitos dessesmecanismos não seriam mais necessários.
O voto teria que ser obrigatório? Certamente que não. Mas para que desse certo, uma abstenção deveria ser computada como rejeição a todos os candidatos (seria interessante acrescentar na cédula de votação a opção N.D.A.). De outra forma, o princípio do comum acordo cairia por terra e uma pequena parcela da população tomaria as decisões.
Estas idéias são controversas, eu sei. Mas às vezes, idéias radicais mudam o mundo.
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