Veículos elétricos - o custo da mudança de paradigma


É desnecessário lembrar que eu sou um defensor ardoroso dos veículos elétricos. Sua elevada eficiência energética compensam todas as demais limitações. No entanto, tenho plena consciência de que esta não será uma mudança indolor, como não o é nenhuma grande mudança de paradigma. Vou ilustrar meu ponto de vista com uma história que eu não sei se é verdadeira, mas é muito didática.

O relógio de pulso a quartzo, que hoje é o padrão no mercado, foi inventado por um relojoeiro suiço chamado Max Hetzel. Na época, foi uma inovação gigantesca, pois permitia fabricar relógios dezenas de vezes mais precisos. No entanto, os fabricantes de relógios suiços não mostraram grande interesse. Diz a lenda que um deles chegou a dizer a Hetzel que um relógio que não tem corda e balanço não é um relógio. Pouco tempo depois, o relógio a quartzo de Hetzel começo a ser fabricado nos Estados Unidos e em seguida no Japão. Eram relógios mais precisos e muito mais baratos do que os tradicionais relógios mecânicos suiços. A consequência foi a quase falência da indústria relojoeira suiça, o que a levou a se adaptar ao novo paradigma, não depois de perder sua hegemonia no mercado. Hoje os relojoeiros suiços concentram-se no restritíssimo mercado de alto luxo, com marcas como Rolex e Breitling. Muito mais joalheria do que relojoaria.

Estamos prestes a testemunhar uma mudança de paradigma semelhante no mercado automotivo. Dominado por quase 100 anos pelos fabricantes americanos, este mercado está prestes a dar uma guinada gigantesca devido a inevitável mudança representada pelos veículos elétricos. Digo inevitável porque em pouco tempo, os veículos à combustão interna não serão mais capazes de  atender à legislação de emissões já prevista, ou mesmo em vigor em alguns locais. Além disso, a tendência de alta no preço do petróleo pressionará para um uso mais eficiente da energia. Não é mais uma questão de se, mas de quando. E como. E devido a essa iminente mudança de paradigma, diversos setores da economia terão que se adaptar rapidamente, ou serão extintos. Abaixo enumero alguns que sofrerão mais impacto:

1. Indústria automotiva

Os fabricantes de veículos e de autopeças terão que se adaptar mais rapidamente. A pressão por novos veículos elétricos que se equiparem em desempenho e autonomia poderá fazer com que muitos desses fabricates saiam do mercado ou sejam obrigados a se unir a outros fabricantes, a exemplo do que já ocorreu entre a Crysler e a Fiat. Além disso, pressões ambientais obrigarão a esses fabricantes a produzir automóveis mais duráveis e que requeiram menos manutenção.

2. Postos de combustível


O destino destes depende essencialmente do modelo energético adotado para alimentar os VE's. Se a opção for pelo hidrogênio (o que pode demorar bastante, pois esta tecnologia ainda não está madura), não muda muita coisa. Será necessário apenas uma mudança no equipamento de abastecimento, que provavelmente será muito parecido com o usado hoje para o GNV. No entanto, mesmo esta mudança implicará em custos e provavelmente durante algum tempo os sistemas atuais de abastecimento de gasolina, álcool e diesel terão que ser mantidos. Caso a opção seja pelas células de combustível a álcool, ou adote-se o modelo híbrido, a mudança será mínima. O impacto certamente será maior caso a opção seja pelos elétricos puros. A maioria das pessoas irá preferir abastecer em suas próprias casas durante a noite. Também estão sendo previstos carregadores em estacionamentos, que seriam semelhantes a parquimetros. Restaria aos postos a oferta de carga rápida, para aqueles que usarem intensivamente VE's em ambiente urbano ou para os "esquecidinhos" que não fizeram a sua carga noturna. Uma oportunidade pode surgir nas rodovias, pois em um primeiro momento, a distância entre postos de abastecimento terá que ser menor do que hoje em dia, abrindo espaço para pequenos negócios de recarga. Finalmente, caso seja adotado o modelo de troca de baterias, como fizeram Israel e Portugal, os postos ainda podem ter o seu lugar garantido no mercado. De uma maneira ou de outra, eles terão que se adaptar. provavelmente terão que diversificar os seus serviços, tendência que já começa a se observar.

3. Empresas de Geração, Transmissão e Distribuição de eletricidade


Atualmente, estas empresas são, por razões óbvias, os principais promotores dos veículos elétricos. Mas mesmo estes terão que se adaptar ao novo modelo. Primeiro porque talvez seja necessário mudar a maneira como a energia é gerada. Usinas termoelétricas terão que ser repensadas. Uma idéia é o aproveitamento do lixo doméstico como combustível. Além disso, a eficiência dos sistemas termoelétricos terá que aumentar muito, tanto para reduzir as emissões de carbono como para aumentar a disponibilidade de energia na rede. Outras formas de geração mais sustentáveis, como a eólica e a solar terão que ser adotadas. Embora muitos não gostem (e eu  particularmente incomodado com a idéia), a presença da energia nuclear será maior. As linhas de transmissão e distribuição também terão que ser revistas, com a utilização de mais sistemas automáticos e mais redundância e descentralização (necessidade que ficou muito clara após o recente apagão ocorrido este mês).

4. Governos e Legislativos

Toda a nossa legislação automotiva foi construida pressupondo veículos a combustão. Inclusive a parte referente a regulamentações e a legislação tributária. Tudo isso precisa ser revisto com urgência. Sem isso, o Brasil particularmente corre o risco de andar na contramão da história. De novo.

5. Indústria do Petróleo


Sem dúvida, é sobre este segmento que incidirá o impacto maior. A adoção imediata dos VE's representaria uma redução drástica no consumo de petróleo. Mas mesmo esta indústria pode ser beneficiada com esta mudança, caso esteja disposta a mudar o seu próprio paradigma, de indústria de energia para indústria de matéria prima. O petróleo é um material riquíssimo, do qual se extraem plásticos, pigmentos, solventes, fibras, lubrificantes, fertilizantes e muitos outros materiais. Queimar o raro e precioso petróleo é um verdadeiro crime. O petróleo deveria ser integralmente reservado paraa produção dessas matérias primas. A nova indústria dos semicondutores orgânicos, que utilizam carbono no lugar do silício, certamente será uma grande consumidora de insumos oriundos do petróleo. Células solares e LEDs orgânicos podem representar o novo mercado da indústria petrolífera, o que ajudaria a aumentar a parcela de geração de energia sustentável e reduzir o consumo mundial de energia. Talvez seja este o foco correto para o pré-sal brasileiro.

6. O Motorista


Tudo o que foi dito é inútil sem o motorista. E é ele o alvo da maior mudança de paradigma. Ele terá  que repensar a maneira como escolhe, compra, dirige e mantém seu automóvel. Verdades absolutas no mundo automotivo serão derrubadas. Cuidados antes essenciais passam a ser desnecessários, enquanto outros cuidados (com as baterias, por exemplo) passam a ser cruciais. Isto será impossível sem uma ampla campanha de informação pública. E esta será impossível sem a participação de todas as entidades envolvidas.

Para saber mais:

Breitling
Paradigma na Wikipédia
Semicondutores orgânicos no Brasil

Comentários

  1. É uma luta difícil.
    No meu entender todas as grandes montadoras já tem seu projeto do futuro guardado, o que aparece é só o que eles querem, veja o exemplo da Palio elétrica uma piada a Fiat já tem projetos bem melhores, fora o que está sendo pesquisado.
    Quando começar a vender VEs todas as montadoras terá o seu.

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  2. Na verdade, o Pálio elétrico é projeto da Itaipu. A Fiat entra só com a carcaça. Quanto a todas as montadoras já terem seu projeto pronto, eu até gostaria que isso fosse verdade. Todas tem alguma experiência anterior na área, mas poucas, como a Renault/Nissan, levaram isso realmente a sério. As demais estão correndo atrás do prejuizo.

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  3. Há alguma explicação realmente convincente, afora a doutrina da conspiração, que justifique a perda de décadas em função do petróleo? Até hoje é um paradigma em plena vigência, visto o grande alarde que o governo dá ao pré-sal. O que adianta termos petróleo em abundância para queimar, se o mundo deve inevitavelmente caminhar para a redução da queima? Como sempre, será que o Brasil está marchando contra a onda histórica?

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